A República Popular da China afirmou, nesta semana, que monitorou de perto o deslocamento de um navio de guerra dos Estados Unidos no Estreito de Taiwan. O episódio, que se soma a uma série de movimentações similares nos últimos anos, foi considerado por Pequim como uma ameaça direta à sua soberania e um sinal claro da ingerência norte-americana em assuntos considerados internos. Já Washington defende que a travessia foi feita em conformidade com o direito internacional e serve para garantir a “liberdade de navegação” na região.
O comunicado do Comando do Teatro Oriental do Exército de Libertação Popular da China (ELP), divulgado no início da manhã de terça-feira (horário local), relatou que o destróier USS Halsey, um navio da classe Arleigh Burke, cruzou o estreito “publicamente e de forma altamente midiática”, algo que o governo chinês interpretou como um gesto deliberado de provocação e demonstração de força.
O Estreito de Taiwan como palco da nova Guerra Fria
A faixa de mar que separa Taiwan da China continental possui cerca de 180 quilômetros em seu ponto mais estreito e é uma das passagens marítimas mais sensíveis do mundo. Para Pequim, a ilha de Taiwan — que tem governo próprio e sistema democrático — é uma província rebelde, e o estreito, parte de suas águas jurisdicionais. Para Washington e seus aliados, trata-se de uma hidrovia internacional, aberta à livre navegação conforme previsto pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), da qual, ironicamente, os EUA não são signatários formais, embora se digam observadores e defensores de seus princípios.
Nos últimos anos, a região tem sido marcada por uma crescente tensão entre China e Estados Unidos. Com a intensificação da rivalidade estratégica entre as duas potências, o Estreito de Taiwan tornou-se um símbolo da disputa por influência no Indo-Pacífico, região-chave para o comércio global e o equilíbrio geopolítico.
Desde a administração Trump, e especialmente sob o governo Biden, a Marinha norte-americana tem intensificado as chamadas “operações de liberdade de navegação” (FONOPs, na sigla em inglês) no Mar do Sul da China e no Estreito de Taiwan. O objetivo oficial é desafiar as reivindicações marítimas excessivas da China e reforçar o compromisso dos EUA com seus aliados e parceiros na região.
A retórica de Pequim: soberania inegociável
A reação da China foi rápida e contundente. O porta-voz do Comando do Teatro Oriental afirmou que “as tropas permanecem em alerta máximo e estão preparadas para enfrentar todas as ameaças e provocações, a fim de salvaguardar resolutamente a soberania nacional e a integridade territorial”.
A mensagem é parte do repertório diplomático e militar adotado por Pequim em relação a Taiwan, especialmente após a visita da então presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, à ilha em 2022. Desde aquele episódio, que a China considerou uma grave violação de sua soberania, o país asiático tem intensificado manobras militares nas imediações da ilha, incluindo exercícios com simulações de bloqueios e ataques a alvos estratégicos.
Os EUA e a estratégia do “equilíbrio tático”
Para os Estados Unidos, a presença militar na região tem dupla função: por um lado, garantir a segurança dos aliados — como Japão, Coreia do Sul, Filipinas e Taiwan — e, por outro, manter o status quo, evitando uma escalada que possa resultar em conflito aberto.
Oficialmente, os EUA mantêm uma política de ambiguidade estratégica em relação a Taiwan, reconhecendo a existência de “uma só China” — o que implica não apoiar formalmente a independência da ilha — mas, ao mesmo tempo, fornecendo apoio militar e vendendo armamentos ao governo taiwanês.
O Pentágono descreveu a última travessia como “rotineira” e parte do compromisso com um Indo-Pacífico livre e aberto. Segundo o comunicado da Sétima Frota dos EUA, com base no Japão, “a embarcação transitou pelo Estreito de Taiwan em águas onde a liberdade de navegação e sobrevoo em alto-mar se aplica, de acordo com o direito internacional”.
Taiwan no centro da disputa global
O caso mais recente reacende os alertas sobre a possibilidade de um confronto direto em torno da questão de Taiwan. O presidente chinês, Xi Jinping, já declarou que “a reunificação completa da pátria é um objetivo histórico que será alcançado”. Em 2023, durante o Congresso Nacional do Povo, o líder chinês endureceu ainda mais o discurso, deixando claro que o uso da força não está fora de questão.
Em paralelo, os EUA têm ampliado os laços militares com Taiwan e reforçado parcerias com países da região. Em abril de 2024, um acordo de cooperação de defesa foi assinado com as Filipinas, permitindo o uso de bases militares no país por tropas norte-americanas. O Japão, por sua vez, tem revisto sua constituição pacifista para ampliar suas capacidades de defesa diante da ameaça representada pela China.
Analistas veem Taiwan como um dos pontos mais críticos de possível fricção no século XXI. Um erro de cálculo, uma movimentação mal interpretada ou um incidente acidental podem gerar uma escalada com consequências imprevisíveis para a estabilidade mundial.
As implicações para o Brasil e o mundo
O impasse entre China e Estados Unidos em torno de Taiwan tem implicações que ultrapassam a região do Indo-Pacífico. O Brasil, enquanto parceiro estratégico tanto de Washington quanto de Pequim, observa a crescente tensão com preocupação. Embora não esteja diretamente envolvido no conflito, o país pode sofrer impactos econômicos caso a situação evolua para uma crise mais ampla.
Taiwan é um dos maiores produtores de semicondutores do mundo, e qualquer interrupção em sua cadeia produtiva afetaria diretamente indústrias no Brasil e em outros países latino-americanos. Além disso, o comércio entre China e Estados Unidos envolve trilhões de dólares em bens, e qualquer sanção ou bloqueio naval pode gerar um efeito dominó nas economias globais.
A guerra de narrativas
Outro elemento relevante do episódio atual é a batalha de narrativas. Tanto China quanto Estados Unidos disputam não apenas o controle físico do estreito, mas também a legitimidade política e diplomática de suas ações. A China busca angariar apoio de países do Sul Global, criticando o que chama de “hegemonismo norte-americano”. Já os EUA tentam convencer o mundo de que estão atuando em defesa da ordem internacional baseada em regras.
Esse embate discursivo também se reflete em fóruns multilaterais como a ONU, o G20 e os BRICS, onde a disputa por corações e mentes está cada vez mais acirrada. A presença de países como o Brasil, a Índia e a África do Sul — que buscam manter uma postura de não alinhamento automático — torna o debate ainda mais relevante.
Perspectivas futuras: contenção ou confronto?
À medida que o ciclo de provocações e reações se repete, cresce a preocupação sobre o futuro da estabilidade na região. De um lado, há sinais de que tanto China quanto Estados Unidos não desejam um conflito direto — o que seria desastroso para ambos. De outro, a lógica da dissuasão mútua pode ser insuficiente para evitar incidentes de maior gravidade.
O desafio está em encontrar mecanismos de comunicação eficazes, canais diplomáticos permanentes e acordos tácitos de conduta que evitem mal-entendidos. Iniciativas como a linha direta de crise entre os comandos militares dos dois países têm sido sugeridas, mas ainda carecem de efetivação prática.
No curto prazo, é provável que a frequência de travessias no Estreito de Taiwan continue, assim como os exercícios militares chineses. O mundo, por sua vez, seguirá assistindo, entre apreensão e esperança, à evolução de um dos capítulos mais delicados da geopolítica contemporânea.
Conclusão
A travessia do destróier norte-americano USS Halsey pelo Estreito de Taiwan e a consequente reação da China são mais do que eventos isolados: são peças de um xadrez global que envolve poder, influência e, sobretudo, a redefinição da ordem mundial. O episódio evidencia a complexidade das relações internacionais no século XXI, em que manobras navais têm tanto peso quanto discursos diplomáticos. Em um cenário onde qualquer passo em falso pode ter efeitos desastrosos, o mundo observa com atenção redobrada cada movimento nas águas que separam Taiwan da China continental — e que, cada vez mais, aproximam o planeta de uma encruzilhada geopolítica.