A recente decisão do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba (TCE-PB) de negar um pedido de liminar que buscava barrar a posse de Sheylla Lemos como conselheira da Corte causou repercussão no cenário político paraibano. Filha do presidente da Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB), deputado Adriano Galdino (Republicanos), Sheylla foi indicada pela Casa Legislativa para ocupar a vaga aberta no colegiado do Tribunal, responsável por fiscalizar a aplicação dos recursos públicos estaduais e municipais.
O caso, que mistura prerrogativas institucionais, interesses políticos e discussões sobre ética pública, reacende um debate antigo sobre os critérios de escolha para cargos em tribunais de contas. A polêmica não é nova, mas o parentesco direto entre a indicada e o presidente da ALPB trouxe uma nova camada de tensão e questionamento à legitimidade e independência das nomeações feitas por casas legislativas.
A decisão do TCE-PB
O pedido para impedir a posse foi protocolado por um grupo de advogados e movimentos sociais que alegaram, entre outros pontos, possível prática de nepotismo, além de quebra do princípio da moralidade administrativa previsto na Constituição Federal. A ação solicitava uma liminar para suspender o ato de nomeação e a cerimônia de posse, marcada para o final do mês de abril.
No entanto, por maioria de votos, o pleno do TCE-PB entendeu que não havia elementos jurídicos suficientes para impedir a posse. O relator do caso destacou que, apesar da relação de parentesco, não se configura nepotismo nos moldes tradicionais, uma vez que a nomeação foi realizada por um colegiado (a Assembleia Legislativa) e não por ato direto do pai da nomeada.
Ainda segundo o relator, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu em ações anteriores que as nomeações para tribunais de contas, mesmo que envolvam parentes de autoridades políticas, não se enquadram automaticamente como nepotismo, desde que sejam aprovadas por voto legislativo e respeitem os critérios formais exigidos pela Constituição.
A indicação de Sheylla Lemos
A escolha de Sheylla Lemos para o cargo de conselheira seguiu o rito tradicional estabelecido pelo regimento interno da Assembleia Legislativa. O processo contou com a apresentação de nomes, avaliação de requisitos e, finalmente, a votação em plenário. A maioria dos deputados estaduais aprovou a indicação, que foi posteriormente encaminhada ao governador João Azevêdo (PSB) para nomeação formal, seguindo os trâmites constitucionais.
Advogada de formação, Sheylla tem um histórico profissional ligado ao setor público e à gestão administrativa, mas críticos da nomeação apontam que sua ascensão ao posto de conselheira do TCE-PB foi facilitada por sua ligação direta com o presidente da Casa Legislativa. Para esses críticos, o processo, ainda que legal, fere princípios republicanos de impessoalidade e moralidade.
A controvérsia do nepotismo institucional
O caso levanta uma pergunta recorrente nos debates sobre a ocupação de cargos em órgãos de controle: até que ponto a legalidade de uma nomeação basta para garantir sua legitimidade perante a sociedade?
A nomeação de parentes por meio de votação legislativa tem sido uma brecha frequentemente explorada para nomeações que seriam vedadas no âmbito do Executivo. Enquanto no Poder Executivo o Supremo já consolidou entendimento claro sobre nepotismo direto e cruzado, nos Legislativos a discussão se torna mais complexa.
Essa “zona cinzenta” tem sido utilizada para justificar diversas nomeações de filhos, esposas, irmãos e aliados de políticos influentes em cargos de relevância institucional — não apenas em tribunais de contas, mas também em ministérios públicos, defensorias e cortes auxiliares.
O papel do TCE e os riscos à sua independência
Os tribunais de contas, tanto estaduais quanto o federal, são estruturas fundamentais para o funcionamento do Estado democrático. Responsáveis pela análise de contas públicas, auditorias de contratos, avaliação de políticas públicas e acompanhamento da execução orçamentária, esses órgãos deveriam funcionar com elevada autonomia técnica e imparcialidade.
Quando a composição desses tribunais se dá majoritariamente por indicações políticas, com laços familiares ou interesses cruzados entre os fiscalizados e os fiscais, cria-se uma contradição essencial: quem deve fiscalizar o poder acaba, muitas vezes, sendo parte dele.
No caso da Paraíba, o TCE-PB exerce papel central na fiscalização dos gastos do Executivo estadual e das prefeituras municipais. Ter na Corte alguém diretamente ligado ao comando da ALPB levanta dúvidas sobre como serão julgadas questões que envolvam os interesses diretos ou indiretos de aliados políticos do presidente da Casa.
Reações políticas e da sociedade civil
A manutenção da nomeação de Sheylla Lemos gerou reações variadas. Parte da base governista na Assembleia defendeu a escolha como legítima, destacando que a indicada cumpre os requisitos legais e que sua formação jurídica a credencia para o cargo. Outros parlamentares, principalmente da oposição, acusaram a decisão de ser um exemplo claro de “aparelhamento das instituições”.
Entidades da sociedade civil também se manifestaram. A Transparência Brasil e o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) publicaram notas criticando o que chamaram de “normalização do favorecimento político” nos processos de escolha para os tribunais de contas. Segundo essas entidades, mesmo quando não há ilegalidade formal, o impacto simbólico dessas nomeações prejudica a imagem e a credibilidade das instituições.
Casos semelhantes pelo Brasil
O que ocorre na Paraíba não é um fenômeno isolado. Diversos estados brasileiros enfrentam situações parecidas, em que tribunais de contas se tornam redutos políticos dominados por famílias e grupos de influência regional. Nos últimos anos, investigações jornalísticas revelaram práticas semelhantes em estados como Alagoas, Maranhão, Bahia e Tocantins, onde conselheiros são, frequentemente, ex-deputados, ex-governadores ou parentes diretos de políticos em exercício.
A prática é legalmente respaldada pelas constituições estaduais e pelas normas dos legislativos, mas levanta questionamentos sobre a independência dos órgãos de controle e sua real capacidade de exercer fiscalização sobre quem os indicou.
Propostas de mudança
Especialistas em direito público e integrantes de movimentos pela reforma institucional defendem a adoção de critérios mais rígidos e objetivos para as indicações a tribunais de contas. Entre as propostas, estão a criação de processos seletivos públicos, a exigência de experiência técnica comprovada, a vedação explícita a indicações de parentes e a ampliação da participação de entidades da sociedade civil no processo de escolha.
Alguns projetos de lei tramitam no Congresso Nacional com o objetivo de alterar a forma de composição dos tribunais de contas, mas enfrentam forte resistência política. A proposta de emenda à Constituição que estabelece mandato fixo para os conselheiros e proíbe indicações de parentes diretos de autoridades tem sido engavetada sucessivamente.
Conclusão
A decisão do TCE-PB de manter a posse de Sheylla Lemos como conselheira da Corte não apenas resolve, no plano jurídico imediato, a questão da legalidade do ato de nomeação. Ela traz à tona um debate mais amplo e necessário sobre os limites éticos das indicações políticas em cargos técnicos e estratégicos para a governança pública.
Ainda que amparada por votos legislativos e normas formais, a nomeação de uma filha de um presidente de Assembleia Legislativa para um tribunal responsável por julgar contas públicas levanta inevitáveis suspeitas de conflito de interesses e compromete a percepção de isenção que deve cercar os órgãos de controle.
A confiança nas instituições depende não apenas do cumprimento da letra da lei, mas também do respeito aos princípios que regem a administração pública: impessoalidade, moralidade, eficiência e transparência. Sempre que esses princípios são relativizados, abre-se espaço para o descrédito institucional — algo que a democracia brasileira, em seus desafios cotidianos, não pode mais se dar ao luxo de ignorar.